Páginas

29 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 5/6


 Era a hora. Todos devem estar sentados e com os cintos de segurança. Masha respeitava pares preexistentes e famílias o quanto podia. Não se importava de não estar ao lado do tal primo, mas queria estar perto do pai. A mãe de Elisa ficaria no compartimento maior, com Luciana e Carlos.
- Vá, filha.
Havia um lugar vago na ponte, Masha o tinha separado para Elisa, que de repente não sabia mais se queria ficar com Peter ou com a família. Mas os assentos do compartimento maior estão todos ocupados. Não era dela escolha. Era de Masha.
Masha chamou Elisa, que deu um último abraço na mãe e na irmã. Não havia mais nenhum traço de dúvida em seus rostos.
- Obrigada, filha.
- Não sei se isto vai dar certo, mãe.
- Não importa. - disse Luciana - Você nós trouxe aqui. Obrigada.
Masha chama por Elisa mais uma vez, impaciente. Não havia mais muito tempo.
As percorrem os corredores estreitos até a ponte, e Elisa a observa com curiosidade. Está pálida, sua testa está suada, seus olhos estão muito abertos. Ao chegarem na entrada da ponte, elas param. Não passam as duas juntas pela pequena porta. Masha olhou para Elisa e sorriu um sorriso triunfante. Ela confiava.
- Pronta para repovoar o mundo?
Ela entrou na ponte e Elisa a seguiu. Peter fez um sinal para Elisa e ela sentou ao lado dele, atando o cinto de segurança. Ele pegou uma faixa de tecido que tinha no colo e passou-a cuidadosamente em volta do tórax dela, amarrando-a à cadeira.
- Imagino que deve ter um bom solavanco pela frente.
Todos estavam prontos para a onda. O submarino já estava no ponto mais fundo que alcançava no Mar de Barents. Foram horas de espera. O corpo de Elisa doía de estar por tanto tempo na mesma posição. Ela queria fechar os olhos, tentar dormir, não conseguia, nem ela nem ninguém. Olhares se encontravam esporadicamente. Até que ouviram um rugido abafado, ainda longe, um rugido de tempestade que se aproxima. E mesmo ainda tão longe, todos imediatamente perceberam que se tratava da maior tempestade de suas vidas. O rugido aumentava de volume e de intensidade, e o submarino começou a balançar de leve, como se fosse embalado numa rede. Elisa fechou os olhos, queria tanto não pensar na avó. E quanto mais queria não pensar nela, mais pensava. Se pegou rezando, e uma lágrima escorreu no seu rosto. Os olhos arderam de segurar o choro, ela não tinha vontade de chorar, não queria entrar em pânico.
O balanço aumentou e ela sentiu um tremor que subia do chão metálico até seus pés e fazia seus joelhos baterem um no outro. Ela abriu os olhos assustada e levantou os pés do chão. Sentiu-se solta demais.
- Pés no chão, Elisa. - Peter avisou.
Ela olhou pra ele, tentou lembrar daquela noite no restaurante, tentou lembrar se em algum momento ele lhe parecera um estranho. Não lhe parecia. Quis poder pegar na mão dele, mas não alcançaria. Ele olhava firmemente para ela, e olhando para o corpo dele na cadeira ela conseguia ver o quanto ela própria já estava chacoalhando. Seria só isso? Iam ficar assim, tremendo, balançando, chacoalhando?
Não.
O submarino foi de repente empurrado pra frente com toda força, alguns gritaram, Elisa sentiu um tranco muito forte e a cabeça foi jogada pra frente e pra trás, batendo no encosto da cadeira. Ficou zonza, caída pro lado, o submarino não devia mais estar na posição correta, estava de lado, de cabeça pra baixo? Tinha capotado?
"Não batemos em nada", ela pensava.
Ainda.
A segunda onda veio com muito mais força que a primeira e foram arrastados com velocidade, aos trancos, Elisa se sentia colar ao encosto da cadeira e tinha medo do momento em que aquilo ia parar, porque o solavanco seria tão forte que... Imaginou só então que alguém, algum dos selecionados por Masha, poderia morrer ali mesmo, dentro do submarino. Ou todos, é claro. Mas estranhamente ela só pensara antes ou na morte de todos ou na sobrevivência de todos. E se morresse um só? Quando aquele movimento acabasse abruptamente, se uma espinha se quebrasse?
Apertou os olhos e cerrou os dentes, tentando se concentrar em alguma imagem, alguma lembrança, sentia o estômago repuxar, os pés formigando, as mãos dormentes de tanto apertarem o braço do assento. Todo tipo de barulho se ouvia dentro do submarino, de gritos a coisas caindo. Tentou se concentrar na mãe e na irmã, a salvo. Um sobrinho, ou uma sobrinha. Resistiria uma gravidez àquela viagem insana?
Aquele arrastar não acabaria nunca? Que horas o mar ia pisar no freio? Ela estava há horas sendo arrastada pela onda? Minutos? Segundos? Onde estariam agora? Quantos quilômetros haviam percorrido? Fez esforço para abrir os olhos e virou o rosto na direção de Peter. Ele também tinha os dentes cerrados e segurava com força na cadeira. Não estava com o tórax amarrado na cadeira, como ela, e ela temeu por ele. Peter olhou pra ela e então veio o solavanco.
O submarino bateu, o solavanco veio com tudo, Elisa sentiu um baque forte, e a cabeça foi jogada pra frente mais uma vez e na volta pra trás, sentindo como se o cérebro fosse um pudim solto dentro de uma tigela de calda, Elisa foi perdendo a consciência, pendendo a cabeça pro lado esquerdo e amolecendo todo o corpo. Ainda chegou a ouvir alguém gritar o seu nome, e apagou.

***

27 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 4/6


A chegada em Murmansk foi caótica. Depois de trocar de aeronave no aeroporto de Moscou eles já imaginavam que sair na rua no que agora já era provavelmente o último dia antes do fim do mundo (só a viagem lhes comera um dia inteiro) não seria tarefa fácil. Os guichês de aluguel de carro e de táxis estavam às moscas, pessoas corriam, funcionários das companhias aéreas choravam atrás dos balcões, atendendo os que fugiam. Quando eles mesmos abandonariam tudo aquilo? Quem poria os fugitivos dentro de aviões? Quanto tempo até que leigos pusessem as mãos em todo tipo de veículo aéreo e se acreditassem capazes de voar, em meio a uma nuvem mundial de aviões de todos os portes e bandeiras, voando todos na mesma direção, o leste?
Enquanto essas perguntas passavam pela sua cabeça, Elisa percebeu que Peter tinha sumido. Nem chegou a temer que ele não fosse voltar, só queria que ele voltasse logo. E voltou. Peter apareceu na calçada em frente ao aeroporto estacionando um carro grande.
- O mais difícil foi escolher um. - dizia, enquanto tentava acomodar a todos dentro do utilitário. - Os carros estão largados no estacionamento, a maioria com a chave dentro, sem estacionar.
- Você roubou um carro?? - Carlos, o cunhado de Elisa, era o único que tinha mala, e Peter acabara de abri-la no chão, sob protestos, e procurava dinheiro, comida e roupas quentes. Elisa o mandou calar a boca. Sempre quisera fazer isso.
No telefone com Masha, Elisa dava instruções confusas a Peter, que tivera a lucidez de roubar um carro com GPS, o que ajudava um pouco.
- Quebrei três vidros de outros SUVs até achar um com GPS. O alfabeto tá me quebrando as pernas, mas as setas eu entendo. - falava, fazendo uma conversão proibida e desviando de alguns carros que, segundo indicava o GPS, estavam na contra-mão. Se Peter pudesse, estaria ele próprio na contra-mão, caso houvesse caminho melhor. Mas não sabia como programar um GPS para circunstâncias de fim do mundo.
Masha informara que o submarino já teria sido deslocado da base militar na véspera, antes do estouro da boiada, conforme combinado entre seu pai e um velho amigo da Marinha que ainda estava na ativa e que pretendia fazer algo semelhante com um veículo mais novo, em melhor estado porém menor, e já todo completo com sua família.
Peter parou o carro diante do portão de ferro da entrada de serviço do clube náutico indicado por Masha. Podiam ver uma movimentação atrás dos portões e Elisa se perguntou de quantas vagas ainda dispunha o submarino naquele momento. Outros amigos de Masha poderiam ter vindo de muito mais perto, parentes morariam na mesma cidade, ela sabia tão pouco sobre a russa! E se ela tivesse uma família enorme?
Peter mal desligara o carro, já estava escancarando o portão, enquanto Luciana e a mãe tiravam do carro a senhora idosa, com aspecto muito cansado. Elisa passou pelo portão puxando Peter pela mão, em direção a um pequeno grupo de pessoas em frente à marina que se avistava no fim do caminho de piso de madeira que rangia debaixo das seis pessoas que agora se apressavam sobre ele.
Pela atitude, era fácil identificar Masha. Falava alto, em inglês, e também em russo, e gesticulava em direção ao submarino cinza-chumbo que jazia na água. Ela era alta, loura, tinha os cabelos presos e não era muito bonita, mas transmitia calma e decisão, e não desespero. Seus gestos eram firmes e seu tom de voz impunha ordem. O homem de meia-idade perto dela, de barba grisalha e roupa grossa e pesada de viagem devia ser seu pai. Ele deixava a filha falar.
- Masha. - Elisa tocou em seu ombro.
Masha se virou.
- Elisa? - a brasileira confirmou com apenas um movimento da cabeça. O grupo começou a gritar protestos diante da chegada de mais gente, de um grupo de estrangeiros. Masha sobrepôs sua ordem de silêncio acima de todos. A partir dali só falou inglês.
- Só temos ainda dez vagas. - falou para Elisa, mas alto o suficiente para que todas as pessoas que ainda aguardavam entendessem. E então baixou o tom de voz - Lá dentro já temos 20 pessoas, entre marinheiros, duas enfermeiras, alguns amigos e parentes.
- Isso não é justo! - um homem gritou. - Ela colocou gente lá dentro que não tem utilidade alguma! Uma adolescente! Eu vi uma adolescente entrar.
- É minha irmã. - Masha falou alto, sem se alterar.
O tumulto ameaçava recomeçar, quando Peter subiu numa caixa de madeira e gritou.
- O critério é dela! Masha decide!
Masha agradeceu com o olhar, que deixou transparecer, por um segundo, o peso da responsabilidade sobre a vida e a morte, algo que era demais para uma moça que não devia ter muito mais de 25 anos.
- Meu pai vai entrar, é ele quem pilota. Mas precisa de par.
- Minha mãe... - Elisa começou.
Masha girou a cabeça levemente.
- Sua mãe é velha demais. Não pode nem ter filhos.
Elisa prosseguiu com frio no estômago sem deixar transparecer sua inquietude.
- Minha mãe é médica.
Masha pensou por alguns segundos.
- Não temos um médico a bordo ainda. Quantos anos ela tem?
A mãe de Elisa não compreendia inglês com perfeição, mas sabia que estavam decidindo sua vida.
- Só vou se minha mãe puder ir. - interviu, em português, com a voz trêmula.
- Você cale a sua boca, Ana Maria. - ralhou a avó. - Você vai entrar nesse negócio se lhe deixarem ir, nem que eu tenha que lhe empurrar.
- Ela tem 47 anos. - Elisa respondeu. A mãe calou-se.
- Especialidade?
- Cirurgia geral.
- Perfeito. Ela entra com meu pai. - a russa se decidiu.
Peter puxou a senhora pela mão, pondo-a mais perto do submarino. Não havia ainda um “setor de selecionados”, mas pareceu que Peter decidira criá-lo ali mesmo. Se Ana Maria ia gostar da ideia de fazer par com um marinheiro russo, pouco importava. A vaga já lhe pertencia.
- Masha, e estas pessoas que estão esperando? - Elisa perguntou, com a voz baixa.
- Alguns são funcionários do clube, outros são vizinhos, pessoas que não conheço. Mas já fiz uma pré-seleção, eles só iriam embarcar se você não chegasse a tempo. Não preciso de telefonistas, secretárias, manicures e garçons. - acrescentou.
O coração de Elisa deu um salto, ao pensar em Peter. Se preocupara tanto em convencer Masha a levar sua mãe que não pensara nele. Nem em si própria. Como passaria pelo critério?
- Devemos sair daqui a duas horas. Papai já fez e refez os cálculos. - Masha continuava. Seu inglês era bonito e com pouco sotaque - É o melhor modo de aproveitar ao máximo as reservas de combustível e ar dentro do submarino pelo maior tempo possível, por isso vamos esperar até que as ondas já estejam sobre as Américas.
Elisa pensou em todas as pessoas que conhecera sendo engolfadas pela água inclemente. Tentou imaginar o cenário de molhado deserto que ressurgiria depois da sequência de ondas gigantes que deveria exterminar a humanidade. E não conseguiu.
Na internet, vira um pouco mais cedo que já não chamavam de “ondas gigantes”, termo gasto com tsunamis anteriores que não se comparariam ao que era esperado. Chamavam-nas de “ondas colossais”.
- E você, Elisa?
A pergunta de Masha acordou Elisa do sonho.
- Hum? - perguntou, achando que já sabia o que a russa queria saber.
- O que você faz?
- Gastronomia. - respondeu na bucha, sem pensar, sabendo que seu trunfo era fraquíssimo - Cheguei a começar a trabalhar numa cozinha de restaurante.
Fez-se um silêncio tenso, no qual Masha parecia querer achar que era de alguma valia uma jovem especializando-se em cozinha dentro de um submarino ou num novo mundo destruído.
- Fiz um curso de aproveitamento de alimentos também! - Elisa acrescentou, sentindo pena de si mesma - Cascas e talos, essas coisas...
Masha demonstrou um pouco de interesse contido.
- Espera! - interpelou Luciana pela primeira vez. - Ela tem um hobby!
Elisa quis beijar a irmã.
- Sim! Carpintaria! - seu coração estava acelerado.
Masha sorriu.
- Você está dentro. Vai cozinhar no submarino. E fazer móveis... depois. - e acrescentou mais baixo - Se houver depois.
O alívio de Elisa era imenso, mas não completo. Não podia advogar por Peter. Mal o conhecia.
- E seu parceiro?
Peter estendeu a Masha uma folha de papel dobrada que acabara de tirar de sua mochila vermelha.
- Já trabalhei como motorista, eletricista, bombeiro hidráulico e mecânico. Tenho curso técnico de mecânica e de hidráulica.
Elisa olhou pra ele impressionada.
- Excelente. - Masha devolveu aberto o certificado do curso técnico - Ninguém até agora tinha se dado ao trabalho de comprovar. - comentou, rindo.
Peter voltou-se para olhar o rosto iluminado de Elisa.
- O restaurante pagava melhor que a oficina do meu vizinho. Muito melhor. - esclareceu, passando o braço pelos ombros dela e trazendo-a para junto da mãe.
- Eu vou com meu primo. - falou Masha.
Um rapaz enorme saiu do meio do grupo, onde conversava com alguém, e, aceitando a criação do “setor dos selecionados” de Peter, posicionou-se próximo à embarcação. Alto, cabelos escuros bem curtos, musculoso, não passou pela cabeça de Elisa perguntar nem mesmo a si própria o que ele poderia oferecer a essa pequena comunidade que tentava sobreviver. Sua força física parecia óbvia e suficiente.
Ninguém pensou em indagar a Masha qual a função dela. Elisa, por acaso, sabia que Masha era química. E mesmo que fosse decoradora. Ela tocava aquela banda. O resto acompanhava, se pudesse.
- E nós? - perguntou um homem de cerca de 30 anos, que segurava com força a mão de uma mulher talvez um pouco mais nova. Eles estavam nas margens do grupo e ainda não tinham feito nenhuma reclamação. Aguardavam com a paciência de quem sabia que tinha chances.
- Sim, podem vir. - Masha assentiu, fazendo um gesto. Elisa não fez perguntas.
- Ainda tenho duas vagas. - disse, olhando para Elisa e em seguida para Luciana.
- Sou professora de crianças. - Luciana disse, baixinho. - Ensino matemática.
- Pode ser. - Masha balançava a cabeça - E seu marido? - apontou para Carlos, que suava.
- Ele é advogado, consultor de empresas. - respondeu, sem confiança.
- Não. - Masha foi taxativa. - Tem um rapaz ali no meio que já foi pedreiro. - os olhos de Luciana se enchiam d’água.
- Vá. - disse Carlos, sem espaço para argumentação. Luciana sacudia a cabeça, querendo dizer que não - Vá, não só por você, vá por nós. Eu estarei junto com você. - e pôs a mão na barriga de Luciana.
- Você está grávida?? - Elisa perguntou em português - Você tá mesmo grávida? Ou é...
- Eu estou, juro! - A irmã tinha lágrimas escorrendo pelas faces - Eu ia contar naquela noite, no restaurante, quando estávamos com papai. Você acha que ela vai me deixar ir assim mesmo?
- Deixar você ir?? Você tá brincando?
Elisa nem piscou.
- Masha, - retomou a lingua franca - Minha irmã está grávida.
- Que ótimo!! - Masha exultou - Dois a bordo no espaço de um. A professora de matemática está mais do que dentro.
- Você não pode me tirar o pai do meu filho. - Luciana murmurou, chorando muito.
- Querida, você não pode decidir em nome de todos. Ela tem razão. - Carlos estava absolutamente calmo.
Um rapaz se levantou do meio do agora muito pequeno grupo. Usava uma roupa clara e fresca, mesmo no que Elisa considerava um puta frio. Em russo, e com muita educação, ele pediu a palavra e disse umas duas ou três frases. Logo em seguida, e sem aguardar resposta, o rapaz de roupas claras foi embora com o semblante impassível. Masha respirou fundo.
- Ele abriu mão do lugar dele para você. - disse ela, olhando para Carlos. - Você deverá aprender a erguer paredes.
- Sim, eu aprendo! - Carlos apressou-se em dizer. Logo em seguida, sua testa vincou-se de compreensão - Mas o rapaz então vai... - fez menção de ir atrás do pedreiro altruísta.
- Não vá. Não o faça pensar duas vezes. - Peter o segurava com a mão no ombro.
- Ele se chama Ivan. - Masha disse. Carlos assentiu, como se entendesse algo.
O grupo estava completo. E Elisa sabia o que isso significava. Segurando firme a bola que só crescia dentro da sua garganta, caminhou até os bancos cimentados à direita da aglomeração de pessoas, e foi seguida pelo seu pequeno grupo agora a salvo. Sua mãe e sua irmã choravam.
- Estou tão feliz. - disse a avó - E tão orgulhosa de você, querida. Você conseguiu, salvou a todos.
- Todos não, vó. Faltou a senhora.
- Que foi que eu lhe disse, Elisa?
- Eu sei, vó. - Elisa não ia discutir, não ia fazer escândalo. Queria ser salva, e sabia que estava no lucro - Vou pensar sempre na senhora, vó. Até o fim.
- Até depois do fim, filha. Vocês estarão seguros, vão sobreviver. Tenho certeza.
E ela sorria com toda tranquilidade. A mãe e a irmã de Elisa a abraçaram, e Elisa virou para Masha, com lágrimas nos olhos.
- Masha...
- Elisa, não posso.
- Eu sei. Mas alguém poderia... ficar com ela, levá-la pra algum lugar, não deixá-la sozinha?
Masha queria ajudar, mas não sabia como. Uma senhora de uns 50 e poucos anos se aproximou e falou com Masha em russo.
- Esta senhora trabalha em um hospital. Perto de lá existe um abrigo antibomba. Ela acha que pode conseguir.
- Vó, a senhora quer ir?
- Eu preferia uma igreja. - ela disse, sorrindo - Mas vou. Posso rezar por vocês em qualquer lugar.
A avó abraçou Elisa com mais força do que achava que possuía. Então a senhora russa lhe deu o braço e tirou do bolso do casaco um terço roxo, colocando-o na mão da avó. Elisa sorriu, e as duas se foram.
Entre os não selecionados houve todo tipo de reação, do choro convulso à revolta, mas a maior parte das pessoas simplesmente saiu dali com pressa. O instinto de sobrevivência empurrava-os na busca de outra solução, ainda que não houvesse. Ficar parado não era opção.
O pai de Masha não falava inglês e organizava sua tripulação silenciosamente em fila para entrarmos no submarino. Por um tempo ninguém dizia nada. Elisa olhava para todos os rostos, pensando se havia chance, e se houvesse... O que colonizariam? Que humanidade resultaria daquela gente? Marinheiro, enfermeira, professora, mecânico, militar. Brasileiros e russos comunicando-se em inglês. Começou a imaginar o que teria dentro de cada bolsa e mochila.
Masha reuniu todos dentro do compartimento maior.
- Elisa, você vai pra cozinha, e quem mais souber cozinhar vá com ela, no máximo quatro pessoas, não cabe mais que isso e não quero tumulto. Peter, para a ponte, com meu pai. Os marinheiros também. O resto fica aqui comigo. Deixem todas as bolsas aqui. Vamos separar o que é útil.
Elisa e Peter se entreolharam.
- Trouxemos livros. - ela falou, receosa.
- Claro que você trouxe. - Masha sorriu - Você se surpreenderá ao ver quantos livros aparecerão do meio destas bolsas.
Elisa sentiu um estranho aperto ao se separar de Peter. Não se conheciam nem há 48 horas.
- Estamos dentro. Você nos salvou.
- O seu diploma é que salvou você. E Masha.
- Você me salvou. - ele disse mais uma vez, e a beijou - Vai dar tudo certo.
- Ou não.
Ele sorriu.
- É. Ou não.
As próximas horas foram frenéticas, mas espantosamente organizadas. Preparavam comida na cozinha, Masha havia enchido a despensa do submarino, e arrumaram as provisões que todos haviam trazido. Quando sentiram o submarino começar a se movimentar lentamente, as quatro pessoas se olharam, conhecidos e estranhos, e sem perceber se deram as mãos dentro da apertada cozinha. Uma mulher rezou, Elisa chorou lembrando da avó e a irmã de Masha a abraçou. Logo o momento passou. Era preciso pensar no futuro curto que tinham. Em algumas horas aquela solução passaria pelo teste definitivo. O fim do mundo.

***

24 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 3


O aeroporto não estava lotado, mas a movimentação era bem estranha. Algumas dezenas de pessoas debruçadas em guichês de companhias aéreas asiáticas falavam alto, e outras corriam para as lojas de vendas de passagens. Aos poucos se espalhava a notícia, mas pelo jeito por enquanto tudo ainda se devia à divulgação da Radio Science e seus reflexos via internet.
Os quatro se enfiaram na pequena fila e logo foram atendidos, muito graças ao fato de que a avó de Elisa precisava de uma cadeira de rodas pra se locomover em longas distâncias, como aeroportos. No balcão, Elisa precisou explicar duas vezes que não, não haveria bagagem a ser despachada.
- Para a Rússia? - a moça repetiu, descrente. - Quatro pessoas? Sem bagagem?
- Sim. - interrompeu Peter. - Só bagagem de mão.
A moça fez uma cara estranha e estendeu os bilhetes de embarque para Elisa.
Naquele instante, as tvs do aeroporto todas passaram a transmitir o mesmo canal de notícias internacionais. E antes mesmo de ouvir o que o âncora ia começar a dizer, Elisa indicou a Peter o portão de embarque com um olhar.
- Mãe, vamos, rápido. - Elisa falou firme, sem gritar. Ela e Peter começaram imediatamente a correr, e a mãe os seguiu. Peter empurrava a cadeira de rodas em alta velocidade em direção ao portão de embarque.
Passaram pelo detector de metais sem controle algum: os agentes de segurança, e na verdade absolutamente todas as pessoas nos corredores e nas salas de embarque, tinham os olhos arregalados grudados nos monitores espalhados pelo aeroporto. O celular de Elisa tocou.
- Luciana? Sim, estamos vendo! Onde vocês estão? No aeroporto? O Carlos já está aí? Isso, Murmansk, é mais perto da base pra onde temos que ir. É, é um submarino, nós vamos tentar...
- É a Luciana? Eu quero falar com ela!
- Espera, mãe. Lu, eu não tenho como garantir o embarque no submarino, você tá entendendo? Não sou eu que vou decidir. Vocês têm chance, se chegarem a tempo. Já estamos na sala de embarque, mas ainda demora um pouco. Sejam rápidos. A partir de agora vai ser mais difícil.
Elisa passou o telefone pra mãe.
- Não demorem.
A mãe de Elisa chorava ao falar com a filha mais velha, enquanto o pânico se alastrava em ondas pelo aeroporto.
- Você tem mais dinheiro? - Peter perguntou.
- Tenho. - Elisa pôs a mão no bolso - Pra quê?
Peter apontou uma loja de eletrônicos no free shop.
- Celulares de satélite. Ondas gigantes não chegam ao espaço.
Elisa olhou pra ele inundada pela certeza de aquele era o macho certo para o fim do mundo. E, talvez, para um recomeço.
- Baterias extras. - ela recomendou. Ele assentiu e saiu com os bolsos cheios de notas.
Elisa sentou numa cadeira ao lado da cadeira de rodas de sua avó e segurou a mão dela, enquanto olhava com olhar perdido a pista de aviões.
- Ele é bonito. - a avó comentou.
Elisa sorriu.
- Ele é mesmo. - concordou Elisa. Era só um bônus. Não era esse o critério.
- Onde você o achou?
- Pertinho do fim do mundo, vó. - as duas riram - Ele era garçom, até ontem à noite, no restaurante onde eu e a Luciana fomos com papai.
- Seu pai acreditou?
- Agora deve estar acreditando. - Elisa resmungou, contrariada - Espero que ele consiga levar a mulher dele pra algum lugar seguro. Se existir isso.
- Sempre foi um rapaz teimoso. - ela ainda chamava o pai de Elisa de rapaz... - Mas o seu, não. É inteligente e bom.
Peter voltou correndo.
- Consegui dois aparelhos, são caros demais. Não quis gastar todo o dinheiro, não sei se vamos precisar de mais. - estendeu para Elisa as caixinhas com os celulares e as baterias.
- Eu trouxe todas as minhas joias. - disse a avó, orgulhosa, dando dois tapinhas na bolsa.
Os dois riram.
- Vó, a senhora é um milagre. - Elisa beijou a mão da avó.
- Filhinha, eu não estou duvidando de nada, não tenho mais idade pra discutir essas coisas. Confio em você, e sei que você está fazendo um esforço pra me levar junto.
- É muito menor do que o esforço que eu teria que fazer pra deixá-la. - afirmou Elisa.
- Sei disso, e só por isso é que vim. Mas vou dizer uma coisa muito séria, e você vai me obedecer, Elisa.
- Eu vou.
- É você que tem que se salvar. Entendeu? Essa moça, sua amiga russa, ela está certa. Jovens. Terão mais chances e serão mais úteis.
- Sim. - Elisa respondeu.
- Mesmo sua mãe...
- Mamãe é medica. - Elisa já havia elaborado esse pensamento uns minutos antes. Se não houvesse nenhum médico entre os candidatos ao embarque, ela soltaria essa ideia.
- O critério é da moça russa. - a avó lembrou - Não crie expectativas.
Peter não tinha coragem de dizer o quanto a avó estava certa, para não ferir os sentimentos de Elisa, mas até ela própria sabia que a avó tinha razão. E também tinha medo de como a mãe de Elisa iria se comportar numa situação como essas. Sangue frio e praticidade não eram seu forte.
Com o rosto vermelho e úmido, a mãe devolveu o celular a Elisa. Sentou-se numa das cadeiras em frente a sua mãe, Elisa e Peter, olhou por alguns segundos para os três, e desviou o olhar para a pista de aviões. O avião em que embarcariam já estava pousado. Os funcionários do aeroporto estavam nervosos, a tripulação parecia apressada e de algum modo aliviada, provavelmente porque pelo menos estavam indo na direção certa. Voos para os Estados Unidos e outros pontos da América estavam sendo cancelados. Elisa tinha certeza de que, em breve, todos os aviões do mundo convergiriam em direção ao leste. Caos.
Peter estava atento à tripulação do voo.
- Eles vão acabar adiantando esse voo. - levantou-se e foi falar com uma moça que olhava pra todos os lados perto da porta de vidro. Poucos minutos depois, fez um sinal para Elisa.
- Vem! - ele disse baixo, gesticulando.
Elisa empurrou a cadeira da avó pelo corredor do finger, seguida pela mãe, largando os cartões de embarque no balcão. A moça nem conferiu os demais, depois de olhar o de Peter. Ele rapidamente tomou a avó de Elisa no colo e levou-a para dentro do avião, dando passos rápidos e largos. Primeira fila.
- Sentem as três juntas. Eu fico deste lado.
Os olhos de Elisa ficaram imediatamente aflitos. Aquele com certeza não era seu plano.
- Não. - disse a mãe dela - Eu fico com a mamãe. Vocês dois ficam juntos. Ninguém ficará só.
Era seu modo de incluir Peter na família em fuga.
O avião saiu quase vazio, rigorosamente na hora. A clara impressão era de que a tripulação adoraria ter adiantado o horário, mas era impressionante a força que tinham as regras estabelecidas, mesmo nos momentos mais críticos. Ao que parecia, a Rússia não era um destino imaginado por muitos. Boa notícia.
O voo longo demais rendeu menos horas de sono do que deveria. As poucas dezenas de passageiros embarcados desobedeceram em massa os avisos de desligar celulares e consultavam a internet cada vez que o avião se aproximava do chão nas duas escalas europeias para reabastecimento em Lisboa e Zurique. Em Lisboa ninguém embarcou. Àquela altura o mundo inteiro já devia estar indo pro leste. Em Zurique, dois passageiros entraram enquanto Peter checava o voo de Moscou para Murmansk na internet.
- Luciana! - a mãe de Elisa gritou ao ver a filha aparecer na porta do avião com o marido vindo logo atrás. Elisa suspirou de alívio e calculou que se acabava ali sua sorte, que já tinha sido muita.

***

22 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 2


  Na porta do prédio baixo e velho, a pausa diante dos degraus não foi hesitação. Não chegou a hesitar. Apenas pensou quão absurda seria sua atitude uma semana antes. Entretanto sua consciência era plena de que tudo havia mudado. Subiu os três degraus e quando ainda procurava o número 2 na lista de apartamentos no painel do interfone, ouviu uma movimentação no apartamento térreo à sua esquerda, um barulho de algo caindo, um resmungo de dor. E a porta se abriu de supetão. Peter usava ainda a mesma camisa branca do uniforme de garçom, pra fora da calça, e apertava a mão no joelho. Atrás dele, uma mesa de centro caída no chão e revistas espalhadas explicavam o ruído e o joelho. Elisa sorriu. Peter a puxou pra si e a beijou, e a pressa de ambos foi se revelando, quase não permitindo que chegassem ao quarto.
  Durante horas, alternaram sono e sexo, muitas palavras absurdas, nenhuma promessa. Nada podiam prometer. Eu podia até dizer que durante aquela noite esqueceram de tudo, mas por nenhum momento a previsão fatal saía de suas cabeças. Pelo contrário, aquela paixão desgovernada só era intensificada pela sensação de alarme e perigo que mantinha alertas seus instintos.
  Peter cochilava um sono leve, Elisa, de olhos abertos, pensava enquanto registrava o pequeno quarto desarrumado de Peter em sua mente. Olhou pra ele com uma espécie toda nova de afeto, algo muito mais basal, como se aquele homem fosse parte da preservação dela própria. Deitada de lado, virada pra ele, sentia os sentidos aguçados pelo extremo, e a velocidade vertiginosa dos seus pensamentos seria nauseante em outras circunstâncias. Lembrou do namorado que enrolava há cerca de três anos e a quem jamais escolheria pra passar um apocalipse, pensou no tipo de critério idiota que usava antes para escolher as pessoas. E o mais estranho é que agora, a escolha daquele homem ali, praticamente não tinha passado por critério algum. Ainda assim, poucas coisas já lhe tinham parecido mais certas.
  Ele abriu os olhos e ficou muito rapidamente desperto como um gato. Quando olhou pra ela, pareceu que procurava um pequeno espaço onde pudesse ser calmo e doce, mas o espaço era pequeno demais. Peter sentou-se na cama e os dois se abraçaram calados.
  - Você não teria um Aristóteles?
  Ele sorriu.
- Na mochila. - indicou com o dedo a mochila vermelha no chão do quarto - E um Platão.
  Ela sorriu. Peter foi até a porta e pegou a mochila preta de Elisa.
- Pesada. - ele comentou, como uma reprovação.
- Eu sei. - ela admitiu. - Eu dou conta.
Ele abriu a mochila dela. O conceito de privacidade era outro que caía por terra na noite-limite.
- Tudo bem. Só o essencial. - disse, brincando com a gaita na mão.
- Já comprei as passagens pra mim e pra minha família. - ela falou - Pra Moscou. Tirei todo o dinheiro da poupança.
- Vendi meu carro esta tarde. - ele disse. - Você pensou nos abrigos?
- Sim, nos abrigos antibomba. Não sei se servirão pra alguma coisa ou se serão solução pior. - um arrepio lhe percorreu, ao pensar num abrigo fechado inundando. - Nem sei se vamos conseguir chegar em algum. Mas foi o que me ocorreu.
- Pensei num submarino... - ele murmurou sorrindo, com os olhos distantes.
E então Elisa foi atingida por uma ideia.
- Masha!
- O quê?
- Masha, uma moça russa, de Murmansk, que eu conheci naquela comunidade dos ouvintes da Radio Science! Ela falou de um submarino, há alguns dias, o pai dela era da Marinha, está aposentado, acho que ele consegue acesso a um submarino, algo assim. Preciso trocar as passagens! - Elisa levantou da cama num pulo e correu pro notebook que estava ligado sobre a mesa. Numa aba, acessou a página da companhia aérea, buscando o destino Murmansk; noutra aba abriu o fórum de discussão do grupo Radio Science. Masha estava on-line!
Masha e Elisa haviam conversado diversas vezes durante esses dois anos. Elisa sabia que a jovem russa levava aquilo tudo ainda mais a sério do que ela própria. Masha se sentiu aliviada ao ver Elisa conectada. As duas conversaram rapidamente, Peter acocorado ao lado de Elisa.
O plano era simples, e não havia nenhuma garantia. O pai de Masha de fato conseguira acesso a um submarino não muito moderno, mas ainda bom, e Masha escolheria 28 pessoas que poderiam embarcar além dela e do pai. Basicamente seriam pessoas que ela conhecia, por ordem de chegada, dando preferência a jovens casais.
- Estamos dentro. - Elisa afirmou. - Eu sei que vamos conseguir.
Mas seu coração se apertava dolorosamente ao pensar em abandonar a mãe e a avó. E sem nem saber onde estaria a irmã àquela altura. Passou uma mensagem de texto para Luciana pelo celular, dizendo que iria tentar uma outra saída, que não podia garantir, mas que a irmã deveria tentar ir para Murmansk, desdobrando a passagem.
Mudou as quatro passagens, adicionando o destino final Murmansk. Já era manhã. Os dois se vestiram, pegaram as mochilas, alguns biscoitos na despensa e o pouco de água mineral que tinha no apartamento de Peter.
Entraram num táxi e foram para a casa de Elisa. No hall de entrada, Peter não conseguiu evitar a surpresa com o luxo da casa. Previsões cristãs e de outras proveniências estavam certas naquele ponto: ao pó voltarás. Sem rancor nenhum por ter vivido com dinheiro contado a vida toda, Peter segurava a mão daquela moça que só agora ele sabia milionária compartilhando com ela exatamente o mesmo destino: uma mochila, uma esperança rala e nenhuma garantia. Uma senhora descia a escadaria vestida num roupão amarelo.
- Elisa? - a expressão era desconfortável pela presença de um estranho àquela hora da manhã.
- Mãe, precisamos arrumar agora algumas roupas pra você e pra vovó.
- Filha, você tem certeza? A sua avó, coitada, pra que fazê-la ir também?
É claro que Elisa já tinha pensado nisso.
- Eu não sei se aguento o peso da culpa de não ter sequer tentado.
A mãe de Elisa não tirava os olhos do estranho. Ou melhor, das mãos dos dois, entrelaçadas.
- Elisa... - ela começou.
- Mãe, o Peter vai com a gente.
- E quem é o Peter?
- Sou eu. - ele respondeu, plenamente consciente de que não era isso que a mulher queria saber.
A mãe de Elisa suspirou.
- A Luciana foi pra Itália, buscar o Carlos. - Elisa continuou, e sua mãe pareceu alarmada ao ouvir que a filha mais velha estava comprando essa ideia. O celular de Elisa tocou no bolso de Peter. Ele entregou o aparelho a ela.
- Masha. - ela explicou. As duas conversaram em inglês muito rapidamente, e Elisa confirmou que já comprara as passagens pra Murmansk. Desligou.
- Masha já me deu as instruções de como chegar à base, a partir de Murmansk.
- Murmansk?? - a mãe exclamou. - Não era Moscou?
- Mãe, existe uma possibilidade... - os olhos de Elisa se encheram de lágrimas que começaram a escorrer pelo rosto com tanta rapidez que sua voz mal tremeu - ... de que eu e o Peter consigamos embarcar num submarino.
Peter apertou a mão de Elisa, e passou a mão livre no rosto dela. Em seguida tirou a mochila dos ombros dela.
- Sobe. Vai falar direito com a sua mãe. - ele olhou o relógio de pulso, antigo, de dar corda, que ele tinha lembrado de procurar numa caixa de sapato cheia de coisas do seu pai. À prova de fim de mundo.   - Temos algum tempo. Se sairmos daqui a uns 50 minutos, chegaremos no aeroporto com folga.
Ela assentiu.
- A cozinha é por ali. - ela indicou. - Pega um pouco mais de água para as outras mochilas.
Ele saiu e as duas subiram juntas.
Peter andou por um corredor grande até chegar a uma cozinha imensa, repleta de tantos aparelhos modernos que ele nem sabia pra que serviam. Abriu os armários e pegou duas garrafas leves. Encheu-as de água e colocou-as na sua mochila. Procurou chocolate e guardou alguns na mochila de Elisa. Andou pela casa devagar, com os olhos atentos e os ouvidos idem. Mas ele nunca iria escutar o que se passava no segundo andar daquela casa imensa.
- Elisa, você ficou doida?? Você acabou de conhecer esse homem, não foi? Eu nunca ouvi falar de Peter nenhum!
- Mãe... - Elisa se esforçava pra ter um mínimo de paciência praquele tipo de conversa. - Escuta. Sim, eu conheci o Peter ontem. Ele também sabe, ele também ouviu na Radio Science, assim como a moça russa que me ligou há pouco. Mãe, você sempre achou que eram cientistas sérios!
- Sim, até dizerem essas besteiras que fizeram você ficar doida!
- Até darem uma má notícia? Bom, a senhora é que sabe. Se quiser esperar sair na tv, como todo mundo, - Elisa chorava - problema seu. Eu vou embora, já fiz o que eu podia fazer.
Tirou do bolso duas das passagens que havia imprimido no computador de Peter e colocou em cima da mesinha do quarto de sua mãe.
- Se eu ainda puder dar alguma sugestão, levem água, biscoitos e chocolate, roupas quentes, meias, usem sapatos confortáveis.
A mãe olhava pra ela com outra expressão no rosto.
- Filha, isso é sério?
Elisa fez um gesto impaciente.
- Você acha que eu tô brincando?? - e saiu em direção ao quarto onde dormia sua avó. Tinha mais de 80 anos, mas Elisa era louca por ela, e sabia que aquilo era sua maior fraqueza naquele momento. Começou a arrumar roupas numa mochila sua. Ela já havia falado com sua avó na véspera, e por incrível que pareça, ela tinha se mostrado menos relutante do que a mãe.
- Vó? - ela falou baixinho, acordando a velha senhora magrinha.
- Bom dia, filha.
- É hora de ir, vó. A viagem que eu lhe falei ontem, lembra?
- Lembro sim.
- Nós vamos pra Rússia.
A avó sorriu.
- Eu sempre quis conhecer a Rússia.
Elisa sorriu e ajudou-a a se levantar.
- Já separei suas roupas. Vá ao banheiro, lave-se e vista isto.
Elisa esperou no corredor apenas alguns minutos. Antes de sua avó sair do quarto, sua mãe abriu a porta, vestida de calça jeans, camiseta e tênis.
- Eu não quero me arrepender disto. - ela frisou.
Elisa deu um suspiro de alívio.
- Eu adoraria pensar que posso me arrepender disto, mãe. Seria um milagre.
- Se for pra ir com essa cara amarrada é melhor nem ir. - disse a avó, que abria a porta do seu quarto, andando com dificuldade.
As três começaram a descer as escadas devagar, e Peter largou as mochilas perto da porta e subiu rapidamente os degraus de mármore.
- Posso? - perguntou à avó, com delicadeza.
A avó olhou pra Elisa com uma expressão aprovadora, e disse que sim, ele podia.
Peter apoiou a senhora em seu braço e ajudou a descer as escadas enquanto Elisa corria pra chamar um táxi.

***

21 de dez. de 2012

Onírico 3 - parte 1

Onírico 3 - "Só o essencial" ou O critério de Masha

   
Ela sabia de uma coisa que ninguém mais naquela mesa sabia, ou acreditava, ou levava a sério. Olhava angustiada pros rostos de seu pai e sua irmã. Estavam num restaurante, era aniversário do pai, e ela sabia que provavelmente era a última vez que o veria. Não suportou o tamanho da angústia e se levantou da mesa quase sem pedir licença.
   
Na noite anterior, como quase sempre fazia às segundas-feiras, ouvindo através de seu rádio amador a estação de rádio pirata Radio Science criada por uma não muito grande comunidade de cientistas franceses, ela soube que o mundo ia acabar. Não; que a humanidade seria exterminada. Um corpo celeste gigantesco vinha em direção à órbita terrestre, mas não havia previsão de colisão. No entanto a proximidade da rota seria suficiente para provocar uma série de ondas gigantes, que atingiria primeiro a costa oeste das Américas, varrendo sem dificuldade alguma todas as cidades americanas, do Norte, do Sul, do Centro. A atividade sísmica deveria continuar, provocando ondas não só no Pacífico como também no Atlântico, o que em alguns dias daria cabo também da Europa e da África. O destino da Ásia ainda estava sob investigação, pois mesmo que a série de ondas não desse a volta no mundo (segundo os cientistas era possível, ou até provável, que isso acontecesse), os primeiros abalos no Pacífico já poderiam ser suficientes para destruir as duas costas, da América e da Ásia.
   
Ela acompanhava via radio amador e Internet as pesquisas desse pequeno grupo de cientistas há pouco mais de dois anos. Não eram muito conhecidos, porém um deles tinha renome internacional e formara uma equipe especialmente para esse trabalho. Procuravam controlar a divulgação das pesquisas enquanto não houvesse confirmação suficiente. Nas últimas semanas falavam com mais seriedade sobre os indícios descobertos e os avanços que faziam. Ontem divulgaram a informação definitiva via rádio pirata. Decerto em algumas horas o mundo inteiro saberia. Quantas horas? Segundo os cientistas, as primeiras ondas se formariam em cerca de dois dias.
   
A rádio passou horas transmitindo, madrugada afora, o que nunca havia acontecido antes. Elisa não dormira. Durante o dia tentara convencer a mãe e a irmã do que havia ouvido. Sem muito sucesso. Ficaram um pouco preocupadas, talvez, mas esse tipo de coisa não acontece no Brasil, e enquanto não vissem nada na tv, não acreditariam. A cabeça de Elisa girava em alta velocidade, planejando uma viagem. Para onde? China, Índia. Exigem visto, ela nem conseguiria comprar as passagens. Como levariam a avó, doente? Adiantaria levá-la? Adiantaria qualquer coisa, qualquer tipo de ação?
   
"O mundo vai acabar", e o pensamento se repetia seguidas vezes, sem interrupção, na sua cabeça. Não era essa a verdade, ela sabia. A humanidade seria exterminada, como foram os dinossauros, animais que dominaram a Terra por muito mais tempo do que os humanos, que agora seriam varridos do planeta. Mas o que resumia melhor toda a angústia do conhecimento era "o mundo vai acabar". O que interessava se baratas ou alguns peixes abissais sobrevivessem? Ela não sobreviveria.
   
No corredor do banheiro do restaurante, Elisa apoiou as duas mãos no comprido aparador de tampo de mármore e respirou fundo. Havia um espelho enorme diante do aparador, e ela ergueu a cabeça e encarou seu rosto pálido e sua expressão atormentada. Que tinha ido fazer ali, afinal? Se despedir do pai, ela sabia.
   
Pelo canto do olho direito percebeu que na outra extremidade do espelho via outro rosto. Que a observava. Era um garçom. Se viraram quase ao mesmo tempo e ficaram de frente um pro outro. O rapaz tinha desfeito a gravata borboleta e desabotoado dois botões da camisa branca, que provavelmente esperava-se que fosse impecável mas que estava toda amassada.
   
Ele tinha a pele clara e os cabelos escuros, despenteados, e os olhos pretos, angustiados. A respiração pesada de ambos obedecia o ritmo forte do desespero. Havia algo ali...
   
Ele apertou os olhos, como se a analisasse, e os lábios de Elisa tremeram.
   
- Você... sabe. - ele balbuciou, incrédulo.
   
- Você sabe?
   
- Ontem, na Radio Science.
   
Calaram-se. A garganta de Elisa encheu-se de lágrimas, ou de qualquer coisa que precisava sair. Alguém que entendia o que ela estava sentindo, pensando. Ele deu um passo a frente, estendeu a mão e tocou a mão de Elisa, que agarrou forte a mão gelada do desconhecido. Aquele garçom desconhecido era a pessoa em quem ela mais podia confiar naquele momento. Ele sabia.
   Quantos ouvintes teria a desconhecida Radio Science? Ela nunca soube.
   
Os lábios entreabertos do garçom pareciam querer filtrar alguma frase, escolher alguma palavra. Não havia o que discutir; haveria o que fazer?
Ele fazia uma pressão forte quase carícia com seus dedos na mão de Elisa, que se aproximou. Mantinham os olhos grudados um no outro, tal o medo terrível que tinham que um dos dois desaparecesse. Num gesto rápido, o garçom puxou Elisa e a abraçou.
   
- Quanto tempo? Dois dias?
   
- Dois dias, talvez três. - a voz de Elisa saiu abafada, o rosto enfiado na camisa do rapaz.
   
Nenhum princípio antes válido fazia sentido naqueles últimos momentos, pensou Elisa, e aquilo era a verdade. Todas as regras estavam ali para serem revistas, tudo o que antes era errado, reprovável, podia não ser mais. Nas últimas 24 horas, aquilo era o mais próximo da tranquilidade a que Elisa havia chegado. Ela afastou o rosto do seu peito, mas ele manteve os braços em volta dela. Estavam juntos naquilo, a partir de agora, e não precisavam de uma razão pra isso. Era a circunstância, era o extremo, era o limite. Os dois se olharam por minutos, o desespero e a confiança mútua mesclados numa espécie de aura espessa que os isolava do resto daquele mundo que continuava no mesmo ritmo de milhares de anos. O ritmo do bicho dominante.
   
Mas os dois abraçados, se encarando, eram dois bichos dominados. Pelo medo, pela falta de futuro, pela incapacidade, pela impotência, pela desesperança. A fatalidade do momento tornava todos os gestos naturais, e o movimento de aproximação dos rostos foi simultâneo. Os dois desconhecidos se beijaram com algum tipo de alívio, como se descobrir que algo de bom ainda pudesse advir daquela catástrofe lhes desse algum tipo muito bizarro de esperança. Abraçavam-se forte durante um longo beijo no qual se escolhiam como parceiros de extinção. Sabiam que não se deixariam mais. Nem haveria futuro suficiente pra isso.
   
Beijavam-se, e não era "como" se o mundo fosse acabar, porque de fato ia, mas sim como se não houvesse absolutamente nada melhor pra fazer nas últimas horas de existência da raça humana.
   Afastaram os lábios sem nenhum constrangimento.
   
- Eu vou pra Moscou. - Elisa tomara essa decisão ainda cedo naquela manhã, por isso a pressa de convencer a mãe e a irmã da gravidade e da urgência da situação. Era uma aposta. A Ásia poderia ser uma das primeiras a ser varrida pela água. Mas poderia ser a última. A Rússia ficava bem no meio, continente seco. Era tudo o que ela poderia esperar.
   
- Eu vou com você. - parecia tão natural.
   
- Eu preciso ir agora. - pensou em seu pai, na mesa.
   
O rapaz a beijou de novo, desta vez com mais pressa.
   
- Como é o seu nome? - ele murmurou primeiro, quase sem parar de beijá-la.
   
- Elisa.
   
- Elisa. - ele repetiu. - Eu sou Peter.
   
- Peter?! Que diabo é isso?? - um homem de smoking esbravejava em voz baixa da entrada do corredor. Peter não respondeu. - Você ficou maluco?
   
- Fiquei. - respondeu Peter.
   
O homem de smoking olhou Elisa de cima a baixo, e ela ajeitou a alça do vestido.
   
- Eu nem quero tentar entender o que você tá fazendo aqui agarrando uma cliente do restaurante. Você tá fora, cara. Desde a semana passada você já tava na mira, chegando atrasado, pedindo adiantamento, folga pra visitar um tio de quem nunca tinha falado antes, sei lá o quê. Chega, cara, chega. Não quer ficar, vaza, tem gente que quer.
   
- Não quero mesmo. - Peter respondeu sem raiva, apenas resoluto.
   
- Passa amanhã onze horas pra buscar tua grana.
   
- Agora. - Peter mantinha o mesmo tom de voz.
   
- Como??
   
- Eu preciso do meu pagamento agora.
   
O homem de smoking riu.
   
- Brincou, né? Você pirou mesmo. Vai roubar o caixa?
   
- Eu preciso, Bernardo.
   
O homem de smoking ficou sério e respirou fundo, olhando para as expressões aflitas de Peter e Elisa.
   
- Você não tá bem.
   
- Escuta, Bernardo, me dá meu dinheiro agora, mesmo que não seja tudo. Eu assino o que você quiser. Nunca mais apareço por aqui, não vou à justiça, nada. Só me dá agora o que você puder me dar do que o restaurante me deve. Só isso. O que puder.
   
O tal Bernardo devia ser o maître, e na verdade agora pareciam que eles eram quase amigos.
   
- Vem comigo aqui no escritório. Eu vou ver o que dá pra fazer.
   
- Já tô indo. - Peter ainda segurava a mão de Elisa. Bernardo olhou para as mãos dos dois e disse.
   
- Tá. Mas depois, vaza. E rápido. - e saiu balançando a cabeça, apressado.
   
- É um cara legal, mas nunca ia acreditar. Não enquanto...
   
- ... não saísse na tv. - completou Elisa.
   
- É.
   
Os dois se olharam de novo.
   
- Eu preciso ir na minha casa, separar algumas coisas, falar com a minha mãe, tentar, ao menos.
   
- Você vem pra minha casa. - era quase uma ordem.
   
- Vou. Em seguida. - Elisa enfiou a mão dentro da pequena bolsinha preta de festa que usava a tiracolo e tirou o celular. - Fica com o meu.
   
Peter tirou seu aparelho do bolso e o entregou para ela.
   
- Em meia hora, liga pro seu número.
   
- Eu vou te buscar onde você estiver.
   
- Eu vou pegar um táxi, é mais rápido do que te esperar.
   
Beijaram-se e Elisa saiu quase correndo em direção ao salão repleto de mesas. O pai e a irmã olharam pra ela com espanto, e ela mal teve coragem de se despedir. Os olhos estavam cheios de lágrimas ao encarar a descrença e o aborrecimento do pai.
   
- Eu preciso ir. Não tenho muito tempo. Ninguém tem. - sorriu. - As passagens estão compradas para amanhã.
    Sua irmã, Luciana, parecia estar genuinamente preocupada. Estaria preocupada com Elisa ou estaria começando a acreditar?
   
- Amanhã?
   
- Temos dois dias. Na Rússia podemos pensar em algo, enquanto nos afastamos. Tudo deve começar na costa oeste das Américas. A gente precisa ganhar algum tempo. - uma pausa - Você vem? Amanhã?
   
Luciana hesitou.
   
- O Carlos está na Itália, a trabalho.
   
- Vá pra lá esta noite, vá buscar o seu marido. Até amanhã a história terá se espalhado, vocês não vão conseguir as passagens. Encontrem com a gente em Moscou, até lá eu vou pensar em alguma coisa.
   
- Essa menina tá ficando louca! Você ainda dá ouvidos a isso, Luciana?
   
- Ela está falando a verdade. - Peter se aproximara, por trás de Elisa, com um envelope pardo estufado na mão. - Amanhã, a esta hora, o caos estará instalado.
   
- E você quem é? Um garçom? - o pai de Elisa estava ficando exasperado.
   
- O Peter é... um amigo. Ele vai comigo.
   
- Eu vou pra casa agora. - Peter ignorava os resmungos e protestos do pai de Elisa. - Vou arrumar minhas coisas e comprar a passagem. Estou esperando você. - deu-lhe um beijo curto e partiu.
   
Luciana havia tomado alguma decisão e estava de pé.
   
- Eu vou pro aeroporto agora. - seu pai olhava pra ela incrédulo. Luciana pegou a mão de Elisa e respirou fundo - Eu estou confiando em você. - e saiu sem se despedir de ninguém.
   
- Tchau, pai. - Elisa parou. Pensou se devia... - Tchau. - e saiu.
Elisa correu até ver o primeiro táxi e jogou-se no banco de trás, metralhando seu endereço. Acompanhava a internet pelo celular de Peter, por que nada havia saído ainda? Sabia que a comunidade científica internacional não dava crédito à Radio Science, mas ainda assim! De qualquer maneira aquilo tinha que ser uma boa notícia. Tempo para agir antes dos outros. Para pensar.
   
Chegando em casa disparou escada acima e começou a jogar roupas a esmo numa mochila. De repente parou e pensou que, se por um milagre ela conseguisse sobreviver, restaria tão pouco da humanidade... Era um desperdício irresponsável levar só roupas. Correndo os olhos pelo quarto, pensava:
   
"Livros."
   
E o peso?
   
Escolheu na pressa e pelo óbvio: pela humanidade, Shakespeare, Rousseau, Camus; por si, Hobsbawm, Gaarder, Rowling. Chega. Alguém iria acabar levando uma Bíblia. Não ela. E mais uma gaita que ela nunca soubera tocar.
   
"Essa tem que ser a nossa vantagem sobre os demais animais que foram ou serão extintos. Conhecimento prévio, capacidade de planejamento. Eu sou humana, isso vai ter que bastar. Preciso me defender com as minhas armas."
   
Começou a descer as escadas com um frio diferente na barriga. Pensava na noite que teria, no que havia escolhido fazer nas poucas horas antes do começo de sua fuga. E ela havia escolhido se apaixonar por um completo desconhecido.
   
Sua mãe e sua avó deviam estar dormindo em seus quartos, e Elisa não acordou nem avisou ninguém. Fechou a porta em silêncio e entrou de novo no mesmo táxi que mandara esperar, carregando nos ombros o peso incômodo do essencial pra que ela e a humanidade não desaparecessem. Na pior das hipóteses, aquilo um dia seria encontrado fossilizado junto a ela. Pela próxima espécie dominante.
   
Sentada no banco do táxi, o motorista esperava.
   
- Pra onde?
   
Elisa tirou o aparelho do bolso da calça jeans e discou seu próprio número.
   
- Rua 30 de novembro, no. 900, apartamento 2. - a voz de Peter lhe entrou pelos ouvidos como uma lufada de vento gelado, e ela se arrepiou até os tornozelos - Vem.
   
Ela repetiu o endereço pro motorista e fechou os olhos.

***