Onírico
3 - "Só o essencial" ou O critério de Masha
Ela sabia de uma coisa que ninguém mais naquela mesa sabia, ou acreditava, ou levava a sério. Olhava angustiada pros rostos de seu pai e sua irmã. Estavam num restaurante, era aniversário do pai, e ela sabia que provavelmente era a última vez que o veria. Não suportou o tamanho da angústia e se levantou da mesa quase sem pedir licença.
Na noite anterior, como quase sempre fazia às segundas-feiras, ouvindo através de seu rádio amador a estação de rádio pirata Radio Science criada por uma não muito grande comunidade de cientistas franceses, ela soube que o mundo ia acabar. Não; que a humanidade seria exterminada. Um corpo celeste gigantesco vinha em direção à órbita terrestre, mas não havia previsão de colisão. No entanto a proximidade da rota seria suficiente para provocar uma série de ondas gigantes, que atingiria primeiro a costa oeste das Américas, varrendo sem dificuldade alguma todas as cidades americanas, do Norte, do Sul, do Centro. A atividade sísmica deveria continuar, provocando ondas não só no Pacífico como também no Atlântico, o que em alguns dias daria cabo também da Europa e da África. O destino da Ásia ainda estava sob investigação, pois mesmo que a série de ondas não desse a volta no mundo (segundo os cientistas era possível, ou até provável, que isso acontecesse), os primeiros abalos no Pacífico já poderiam ser suficientes para destruir as duas costas, da América e da Ásia.
Ela acompanhava via radio amador e Internet as pesquisas desse pequeno grupo de cientistas há pouco mais de dois anos. Não eram muito conhecidos, porém um deles tinha renome internacional e formara uma equipe especialmente para esse trabalho. Procuravam controlar a divulgação das pesquisas enquanto não houvesse confirmação suficiente. Nas últimas semanas falavam com mais seriedade sobre os indícios descobertos e os avanços que faziam. Ontem divulgaram a informação definitiva via rádio pirata. Decerto em algumas horas o mundo inteiro saberia. Quantas horas? Segundo os cientistas, as primeiras ondas se formariam em cerca de dois dias.
A rádio passou horas transmitindo, madrugada afora, o que nunca havia acontecido antes. Elisa não dormira. Durante o dia tentara convencer a mãe e a irmã do que havia ouvido. Sem muito sucesso. Ficaram um pouco preocupadas, talvez, mas esse tipo de coisa não acontece no Brasil, e enquanto não vissem nada na tv, não acreditariam. A cabeça de Elisa girava em alta velocidade, planejando uma viagem. Para onde? China, Índia. Exigem visto, ela nem conseguiria comprar as passagens. Como levariam a avó, doente? Adiantaria levá-la? Adiantaria qualquer coisa, qualquer tipo de ação?
"O mundo vai acabar", e o pensamento se repetia seguidas vezes, sem interrupção, na sua cabeça. Não era essa a verdade, ela sabia. A humanidade seria exterminada, como foram os dinossauros, animais que dominaram a Terra por muito mais tempo do que os humanos, que agora seriam varridos do planeta. Mas o que resumia melhor toda a angústia do conhecimento era "o mundo vai acabar". O que interessava se baratas ou alguns peixes abissais sobrevivessem? Ela não sobreviveria.
No corredor do banheiro do restaurante, Elisa apoiou as duas mãos no comprido aparador de tampo de mármore e respirou fundo. Havia um espelho enorme diante do aparador, e ela ergueu a cabeça e encarou seu rosto pálido e sua expressão atormentada. Que tinha ido fazer ali, afinal? Se despedir do pai, ela sabia.
Pelo canto do olho direito percebeu que na outra extremidade do espelho via outro rosto. Que a observava. Era um garçom. Se viraram quase ao mesmo tempo e ficaram de frente um pro outro. O rapaz tinha desfeito a gravata borboleta e desabotoado dois botões da camisa branca, que provavelmente esperava-se que fosse impecável mas que estava toda amassada.
Ele tinha a pele clara e os cabelos escuros, despenteados, e os olhos pretos, angustiados. A respiração pesada de ambos obedecia o ritmo forte do desespero. Havia algo ali...
Ele apertou os olhos, como se a analisasse, e os lábios de Elisa tremeram.
- Você... sabe. - ele balbuciou, incrédulo.
- Você sabe?
- Ontem, na Radio Science.
Calaram-se. A garganta de Elisa encheu-se de lágrimas, ou de qualquer coisa que precisava sair. Alguém que entendia o que ela estava sentindo, pensando. Ele deu um passo a frente, estendeu a mão e tocou a mão de Elisa, que agarrou forte a mão gelada do desconhecido. Aquele garçom desconhecido era a pessoa em quem ela mais podia confiar naquele momento. Ele sabia.
Quantos ouvintes teria a desconhecida Radio Science? Ela nunca soube.
Os lábios entreabertos do garçom pareciam querer filtrar alguma frase, escolher alguma palavra. Não havia o que discutir; haveria o que fazer?
Ele fazia uma pressão forte quase carícia com seus dedos na mão de Elisa, que se aproximou. Mantinham os olhos grudados um no outro, tal o medo terrível que tinham que um dos dois desaparecesse. Num gesto rápido, o garçom puxou Elisa e a abraçou.
- Quanto tempo? Dois dias?
- Dois dias, talvez três. - a voz de Elisa saiu abafada, o rosto enfiado na camisa do rapaz.
Nenhum princípio antes válido fazia sentido naqueles últimos momentos, pensou Elisa, e aquilo era a verdade. Todas as regras estavam ali para serem revistas, tudo o que antes era errado, reprovável, podia não ser mais. Nas últimas 24 horas, aquilo era o mais próximo da tranquilidade a que Elisa havia chegado. Ela afastou o rosto do seu peito, mas ele manteve os braços em volta dela. Estavam juntos naquilo, a partir de agora, e não precisavam de uma razão pra isso. Era a circunstância, era o extremo, era o limite. Os dois se olharam por minutos, o desespero e a confiança mútua mesclados numa espécie de aura espessa que os isolava do resto daquele mundo que continuava no mesmo ritmo de milhares de anos. O ritmo do bicho dominante.
Mas os dois abraçados, se encarando, eram dois bichos dominados. Pelo medo, pela falta de futuro, pela incapacidade, pela impotência, pela desesperança. A fatalidade do momento tornava todos os gestos naturais, e o movimento de aproximação dos rostos foi simultâneo. Os dois desconhecidos se beijaram com algum tipo de alívio, como se descobrir que algo de bom ainda pudesse advir daquela catástrofe lhes desse algum tipo muito bizarro de esperança. Abraçavam-se forte durante um longo beijo no qual se escolhiam como parceiros de extinção. Sabiam que não se deixariam mais. Nem haveria futuro suficiente pra isso.
Beijavam-se, e não era "como" se o mundo fosse acabar, porque de fato ia, mas sim como se não houvesse absolutamente nada melhor pra fazer nas últimas horas de existência da raça humana.
Afastaram os lábios sem nenhum constrangimento.
- Eu vou pra Moscou. - Elisa tomara essa decisão ainda cedo naquela manhã, por isso a pressa de convencer a mãe e a irmã da gravidade e da urgência da situação. Era uma aposta. A Ásia poderia ser uma das primeiras a ser varrida pela água. Mas poderia ser a última. A Rússia ficava bem no meio, continente seco. Era tudo o que ela poderia esperar.
- Eu vou com você. - parecia tão natural.
- Eu preciso ir agora. - pensou em seu pai, na mesa.
O rapaz a beijou de novo, desta vez com mais pressa.
- Como é o seu nome? - ele murmurou primeiro, quase sem parar de beijá-la.
- Elisa.
- Elisa. - ele repetiu. - Eu sou Peter.
- Peter?! Que diabo é isso?? - um homem de smoking esbravejava em voz baixa da entrada do corredor. Peter não respondeu. - Você ficou maluco?
- Fiquei. - respondeu Peter.
O homem de smoking olhou Elisa de cima a baixo, e ela ajeitou a alça do vestido.
- Eu nem quero tentar entender o que você tá fazendo aqui agarrando uma cliente do restaurante. Você tá fora, cara. Desde a semana passada você já tava na mira, chegando atrasado, pedindo adiantamento, folga pra visitar um tio de quem nunca tinha falado antes, sei lá o quê. Chega, cara, chega. Não quer ficar, vaza, tem gente que quer.
- Não quero mesmo. - Peter respondeu sem raiva, apenas resoluto.
- Passa amanhã onze horas pra buscar tua grana.
- Agora. - Peter mantinha o mesmo tom de voz.
- Como??
- Eu preciso do meu pagamento agora.
O homem de smoking riu.
- Brincou, né? Você pirou mesmo. Vai roubar o caixa?
- Eu preciso, Bernardo.
O homem de smoking ficou sério e respirou fundo, olhando para as expressões aflitas de Peter e Elisa.
- Você não tá bem.
- Escuta, Bernardo, me dá meu dinheiro agora, mesmo que não seja tudo. Eu assino o que você quiser. Nunca mais apareço por aqui, não vou à justiça, nada. Só me dá agora o que você puder me dar do que o restaurante me deve. Só isso. O que puder.
O tal Bernardo devia ser o maître, e na verdade agora pareciam que eles eram quase amigos.
- Vem comigo aqui no escritório. Eu vou ver o que dá pra fazer.
- Já tô indo. - Peter ainda segurava a mão de Elisa. Bernardo olhou para as mãos dos dois e disse.
- Tá. Mas depois, vaza. E rápido. - e saiu balançando a cabeça, apressado.
- É um cara legal, mas nunca ia acreditar. Não enquanto...
- ... não saísse na tv. - completou Elisa.
- É.
Os dois se olharam de novo.
- Eu preciso ir na minha casa, separar algumas coisas, falar com a minha mãe, tentar, ao menos.
- Você vem pra minha casa. - era quase uma ordem.
- Vou. Em seguida. - Elisa enfiou a mão dentro da pequena bolsinha preta de festa que usava a tiracolo e tirou o celular. - Fica com o meu.
Peter tirou seu aparelho do bolso e o entregou para ela.
- Em meia hora, liga pro seu número.
- Eu vou te buscar onde você estiver.
- Eu vou pegar um táxi, é mais rápido do que te esperar.
Beijaram-se e Elisa saiu quase correndo em direção ao salão repleto de mesas. O pai e a irmã olharam pra ela com espanto, e ela mal teve coragem de se despedir. Os olhos estavam cheios de lágrimas ao encarar a descrença e o aborrecimento do pai.
- Eu preciso ir. Não tenho muito tempo. Ninguém tem. - sorriu. - As passagens estão compradas para amanhã.
Ela sabia de uma coisa que ninguém mais naquela mesa sabia, ou acreditava, ou levava a sério. Olhava angustiada pros rostos de seu pai e sua irmã. Estavam num restaurante, era aniversário do pai, e ela sabia que provavelmente era a última vez que o veria. Não suportou o tamanho da angústia e se levantou da mesa quase sem pedir licença.
Na noite anterior, como quase sempre fazia às segundas-feiras, ouvindo através de seu rádio amador a estação de rádio pirata Radio Science criada por uma não muito grande comunidade de cientistas franceses, ela soube que o mundo ia acabar. Não; que a humanidade seria exterminada. Um corpo celeste gigantesco vinha em direção à órbita terrestre, mas não havia previsão de colisão. No entanto a proximidade da rota seria suficiente para provocar uma série de ondas gigantes, que atingiria primeiro a costa oeste das Américas, varrendo sem dificuldade alguma todas as cidades americanas, do Norte, do Sul, do Centro. A atividade sísmica deveria continuar, provocando ondas não só no Pacífico como também no Atlântico, o que em alguns dias daria cabo também da Europa e da África. O destino da Ásia ainda estava sob investigação, pois mesmo que a série de ondas não desse a volta no mundo (segundo os cientistas era possível, ou até provável, que isso acontecesse), os primeiros abalos no Pacífico já poderiam ser suficientes para destruir as duas costas, da América e da Ásia.
Ela acompanhava via radio amador e Internet as pesquisas desse pequeno grupo de cientistas há pouco mais de dois anos. Não eram muito conhecidos, porém um deles tinha renome internacional e formara uma equipe especialmente para esse trabalho. Procuravam controlar a divulgação das pesquisas enquanto não houvesse confirmação suficiente. Nas últimas semanas falavam com mais seriedade sobre os indícios descobertos e os avanços que faziam. Ontem divulgaram a informação definitiva via rádio pirata. Decerto em algumas horas o mundo inteiro saberia. Quantas horas? Segundo os cientistas, as primeiras ondas se formariam em cerca de dois dias.
A rádio passou horas transmitindo, madrugada afora, o que nunca havia acontecido antes. Elisa não dormira. Durante o dia tentara convencer a mãe e a irmã do que havia ouvido. Sem muito sucesso. Ficaram um pouco preocupadas, talvez, mas esse tipo de coisa não acontece no Brasil, e enquanto não vissem nada na tv, não acreditariam. A cabeça de Elisa girava em alta velocidade, planejando uma viagem. Para onde? China, Índia. Exigem visto, ela nem conseguiria comprar as passagens. Como levariam a avó, doente? Adiantaria levá-la? Adiantaria qualquer coisa, qualquer tipo de ação?
"O mundo vai acabar", e o pensamento se repetia seguidas vezes, sem interrupção, na sua cabeça. Não era essa a verdade, ela sabia. A humanidade seria exterminada, como foram os dinossauros, animais que dominaram a Terra por muito mais tempo do que os humanos, que agora seriam varridos do planeta. Mas o que resumia melhor toda a angústia do conhecimento era "o mundo vai acabar". O que interessava se baratas ou alguns peixes abissais sobrevivessem? Ela não sobreviveria.
No corredor do banheiro do restaurante, Elisa apoiou as duas mãos no comprido aparador de tampo de mármore e respirou fundo. Havia um espelho enorme diante do aparador, e ela ergueu a cabeça e encarou seu rosto pálido e sua expressão atormentada. Que tinha ido fazer ali, afinal? Se despedir do pai, ela sabia.
Pelo canto do olho direito percebeu que na outra extremidade do espelho via outro rosto. Que a observava. Era um garçom. Se viraram quase ao mesmo tempo e ficaram de frente um pro outro. O rapaz tinha desfeito a gravata borboleta e desabotoado dois botões da camisa branca, que provavelmente esperava-se que fosse impecável mas que estava toda amassada.
Ele tinha a pele clara e os cabelos escuros, despenteados, e os olhos pretos, angustiados. A respiração pesada de ambos obedecia o ritmo forte do desespero. Havia algo ali...
Ele apertou os olhos, como se a analisasse, e os lábios de Elisa tremeram.
- Você... sabe. - ele balbuciou, incrédulo.
- Você sabe?
- Ontem, na Radio Science.
Calaram-se. A garganta de Elisa encheu-se de lágrimas, ou de qualquer coisa que precisava sair. Alguém que entendia o que ela estava sentindo, pensando. Ele deu um passo a frente, estendeu a mão e tocou a mão de Elisa, que agarrou forte a mão gelada do desconhecido. Aquele garçom desconhecido era a pessoa em quem ela mais podia confiar naquele momento. Ele sabia.
Quantos ouvintes teria a desconhecida Radio Science? Ela nunca soube.
Os lábios entreabertos do garçom pareciam querer filtrar alguma frase, escolher alguma palavra. Não havia o que discutir; haveria o que fazer?
Ele fazia uma pressão forte quase carícia com seus dedos na mão de Elisa, que se aproximou. Mantinham os olhos grudados um no outro, tal o medo terrível que tinham que um dos dois desaparecesse. Num gesto rápido, o garçom puxou Elisa e a abraçou.
- Quanto tempo? Dois dias?
- Dois dias, talvez três. - a voz de Elisa saiu abafada, o rosto enfiado na camisa do rapaz.
Nenhum princípio antes válido fazia sentido naqueles últimos momentos, pensou Elisa, e aquilo era a verdade. Todas as regras estavam ali para serem revistas, tudo o que antes era errado, reprovável, podia não ser mais. Nas últimas 24 horas, aquilo era o mais próximo da tranquilidade a que Elisa havia chegado. Ela afastou o rosto do seu peito, mas ele manteve os braços em volta dela. Estavam juntos naquilo, a partir de agora, e não precisavam de uma razão pra isso. Era a circunstância, era o extremo, era o limite. Os dois se olharam por minutos, o desespero e a confiança mútua mesclados numa espécie de aura espessa que os isolava do resto daquele mundo que continuava no mesmo ritmo de milhares de anos. O ritmo do bicho dominante.
Mas os dois abraçados, se encarando, eram dois bichos dominados. Pelo medo, pela falta de futuro, pela incapacidade, pela impotência, pela desesperança. A fatalidade do momento tornava todos os gestos naturais, e o movimento de aproximação dos rostos foi simultâneo. Os dois desconhecidos se beijaram com algum tipo de alívio, como se descobrir que algo de bom ainda pudesse advir daquela catástrofe lhes desse algum tipo muito bizarro de esperança. Abraçavam-se forte durante um longo beijo no qual se escolhiam como parceiros de extinção. Sabiam que não se deixariam mais. Nem haveria futuro suficiente pra isso.
Beijavam-se, e não era "como" se o mundo fosse acabar, porque de fato ia, mas sim como se não houvesse absolutamente nada melhor pra fazer nas últimas horas de existência da raça humana.
Afastaram os lábios sem nenhum constrangimento.
- Eu vou pra Moscou. - Elisa tomara essa decisão ainda cedo naquela manhã, por isso a pressa de convencer a mãe e a irmã da gravidade e da urgência da situação. Era uma aposta. A Ásia poderia ser uma das primeiras a ser varrida pela água. Mas poderia ser a última. A Rússia ficava bem no meio, continente seco. Era tudo o que ela poderia esperar.
- Eu vou com você. - parecia tão natural.
- Eu preciso ir agora. - pensou em seu pai, na mesa.
O rapaz a beijou de novo, desta vez com mais pressa.
- Como é o seu nome? - ele murmurou primeiro, quase sem parar de beijá-la.
- Elisa.
- Elisa. - ele repetiu. - Eu sou Peter.
- Peter?! Que diabo é isso?? - um homem de smoking esbravejava em voz baixa da entrada do corredor. Peter não respondeu. - Você ficou maluco?
- Fiquei. - respondeu Peter.
O homem de smoking olhou Elisa de cima a baixo, e ela ajeitou a alça do vestido.
- Eu nem quero tentar entender o que você tá fazendo aqui agarrando uma cliente do restaurante. Você tá fora, cara. Desde a semana passada você já tava na mira, chegando atrasado, pedindo adiantamento, folga pra visitar um tio de quem nunca tinha falado antes, sei lá o quê. Chega, cara, chega. Não quer ficar, vaza, tem gente que quer.
- Não quero mesmo. - Peter respondeu sem raiva, apenas resoluto.
- Passa amanhã onze horas pra buscar tua grana.
- Agora. - Peter mantinha o mesmo tom de voz.
- Como??
- Eu preciso do meu pagamento agora.
O homem de smoking riu.
- Brincou, né? Você pirou mesmo. Vai roubar o caixa?
- Eu preciso, Bernardo.
O homem de smoking ficou sério e respirou fundo, olhando para as expressões aflitas de Peter e Elisa.
- Você não tá bem.
- Escuta, Bernardo, me dá meu dinheiro agora, mesmo que não seja tudo. Eu assino o que você quiser. Nunca mais apareço por aqui, não vou à justiça, nada. Só me dá agora o que você puder me dar do que o restaurante me deve. Só isso. O que puder.
O tal Bernardo devia ser o maître, e na verdade agora pareciam que eles eram quase amigos.
- Vem comigo aqui no escritório. Eu vou ver o que dá pra fazer.
- Já tô indo. - Peter ainda segurava a mão de Elisa. Bernardo olhou para as mãos dos dois e disse.
- Tá. Mas depois, vaza. E rápido. - e saiu balançando a cabeça, apressado.
- É um cara legal, mas nunca ia acreditar. Não enquanto...
- ... não saísse na tv. - completou Elisa.
- É.
Os dois se olharam de novo.
- Eu preciso ir na minha casa, separar algumas coisas, falar com a minha mãe, tentar, ao menos.
- Você vem pra minha casa. - era quase uma ordem.
- Vou. Em seguida. - Elisa enfiou a mão dentro da pequena bolsinha preta de festa que usava a tiracolo e tirou o celular. - Fica com o meu.
Peter tirou seu aparelho do bolso e o entregou para ela.
- Em meia hora, liga pro seu número.
- Eu vou te buscar onde você estiver.
- Eu vou pegar um táxi, é mais rápido do que te esperar.
Beijaram-se e Elisa saiu quase correndo em direção ao salão repleto de mesas. O pai e a irmã olharam pra ela com espanto, e ela mal teve coragem de se despedir. Os olhos estavam cheios de lágrimas ao encarar a descrença e o aborrecimento do pai.
- Eu preciso ir. Não tenho muito tempo. Ninguém tem. - sorriu. - As passagens estão compradas para amanhã.
Sua
irmã, Luciana, parecia estar genuinamente preocupada. Estaria
preocupada com Elisa ou estaria começando a acreditar?
- Amanhã?
- Temos dois dias. Na Rússia podemos pensar em algo, enquanto nos afastamos. Tudo deve começar na costa oeste das Américas. A gente precisa ganhar algum tempo. - uma pausa - Você vem? Amanhã?
Luciana hesitou.
- O Carlos está na Itália, a trabalho.
- Vá pra lá esta noite, vá buscar o seu marido. Até amanhã a história terá se espalhado, vocês não vão conseguir as passagens. Encontrem com a gente em Moscou, até lá eu vou pensar em alguma coisa.
- Essa menina tá ficando louca! Você ainda dá ouvidos a isso, Luciana?
- Ela está falando a verdade. - Peter se aproximara, por trás de Elisa, com um envelope pardo estufado na mão. - Amanhã, a esta hora, o caos estará instalado.
- E você quem é? Um garçom? - o pai de Elisa estava ficando exasperado.
- O Peter é... um amigo. Ele vai comigo.
- Eu vou pra casa agora. - Peter ignorava os resmungos e protestos do pai de Elisa. - Vou arrumar minhas coisas e comprar a passagem. Estou esperando você. - deu-lhe um beijo curto e partiu.
Luciana havia tomado alguma decisão e estava de pé.
- Eu vou pro aeroporto agora. - seu pai olhava pra ela incrédulo. Luciana pegou a mão de Elisa e respirou fundo - Eu estou confiando em você. - e saiu sem se despedir de ninguém.
- Tchau, pai. - Elisa parou. Pensou se devia... - Tchau. - e saiu.
Elisa correu até ver o primeiro táxi e jogou-se no banco de trás, metralhando seu endereço. Acompanhava a internet pelo celular de Peter, por que nada havia saído ainda? Sabia que a comunidade científica internacional não dava crédito à Radio Science, mas ainda assim! De qualquer maneira aquilo tinha que ser uma boa notícia. Tempo para agir antes dos outros. Para pensar.
Chegando em casa disparou escada acima e começou a jogar roupas a esmo numa mochila. De repente parou e pensou que, se por um milagre ela conseguisse sobreviver, restaria tão pouco da humanidade... Era um desperdício irresponsável levar só roupas. Correndo os olhos pelo quarto, pensava:
"Livros."
E o peso?
Escolheu na pressa e pelo óbvio: pela humanidade, Shakespeare, Rousseau, Camus; por si, Hobsbawm, Gaarder, Rowling. Chega. Alguém iria acabar levando uma Bíblia. Não ela. E mais uma gaita que ela nunca soubera tocar.
"Essa tem que ser a nossa vantagem sobre os demais animais que foram ou serão extintos. Conhecimento prévio, capacidade de planejamento. Eu sou humana, isso vai ter que bastar. Preciso me defender com as minhas armas."
Começou a descer as escadas com um frio diferente na barriga. Pensava na noite que teria, no que havia escolhido fazer nas poucas horas antes do começo de sua fuga. E ela havia escolhido se apaixonar por um completo desconhecido.
Sua mãe e sua avó deviam estar dormindo em seus quartos, e Elisa não acordou nem avisou ninguém. Fechou a porta em silêncio e entrou de novo no mesmo táxi que mandara esperar, carregando nos ombros o peso incômodo do essencial pra que ela e a humanidade não desaparecessem. Na pior das hipóteses, aquilo um dia seria encontrado fossilizado junto a ela. Pela próxima espécie dominante.
Sentada no banco do táxi, o motorista esperava.
- Pra onde?
Elisa tirou o aparelho do bolso da calça jeans e discou seu próprio número.
- Rua 30 de novembro, no. 900, apartamento 2. - a voz de Peter lhe entrou pelos ouvidos como uma lufada de vento gelado, e ela se arrepiou até os tornozelos - Vem.
Ela repetiu o endereço pro motorista e fechou os olhos.
- Amanhã?
- Temos dois dias. Na Rússia podemos pensar em algo, enquanto nos afastamos. Tudo deve começar na costa oeste das Américas. A gente precisa ganhar algum tempo. - uma pausa - Você vem? Amanhã?
Luciana hesitou.
- O Carlos está na Itália, a trabalho.
- Vá pra lá esta noite, vá buscar o seu marido. Até amanhã a história terá se espalhado, vocês não vão conseguir as passagens. Encontrem com a gente em Moscou, até lá eu vou pensar em alguma coisa.
- Essa menina tá ficando louca! Você ainda dá ouvidos a isso, Luciana?
- Ela está falando a verdade. - Peter se aproximara, por trás de Elisa, com um envelope pardo estufado na mão. - Amanhã, a esta hora, o caos estará instalado.
- E você quem é? Um garçom? - o pai de Elisa estava ficando exasperado.
- O Peter é... um amigo. Ele vai comigo.
- Eu vou pra casa agora. - Peter ignorava os resmungos e protestos do pai de Elisa. - Vou arrumar minhas coisas e comprar a passagem. Estou esperando você. - deu-lhe um beijo curto e partiu.
Luciana havia tomado alguma decisão e estava de pé.
- Eu vou pro aeroporto agora. - seu pai olhava pra ela incrédulo. Luciana pegou a mão de Elisa e respirou fundo - Eu estou confiando em você. - e saiu sem se despedir de ninguém.
- Tchau, pai. - Elisa parou. Pensou se devia... - Tchau. - e saiu.
Elisa correu até ver o primeiro táxi e jogou-se no banco de trás, metralhando seu endereço. Acompanhava a internet pelo celular de Peter, por que nada havia saído ainda? Sabia que a comunidade científica internacional não dava crédito à Radio Science, mas ainda assim! De qualquer maneira aquilo tinha que ser uma boa notícia. Tempo para agir antes dos outros. Para pensar.
Chegando em casa disparou escada acima e começou a jogar roupas a esmo numa mochila. De repente parou e pensou que, se por um milagre ela conseguisse sobreviver, restaria tão pouco da humanidade... Era um desperdício irresponsável levar só roupas. Correndo os olhos pelo quarto, pensava:
"Livros."
E o peso?
Escolheu na pressa e pelo óbvio: pela humanidade, Shakespeare, Rousseau, Camus; por si, Hobsbawm, Gaarder, Rowling. Chega. Alguém iria acabar levando uma Bíblia. Não ela. E mais uma gaita que ela nunca soubera tocar.
"Essa tem que ser a nossa vantagem sobre os demais animais que foram ou serão extintos. Conhecimento prévio, capacidade de planejamento. Eu sou humana, isso vai ter que bastar. Preciso me defender com as minhas armas."
Começou a descer as escadas com um frio diferente na barriga. Pensava na noite que teria, no que havia escolhido fazer nas poucas horas antes do começo de sua fuga. E ela havia escolhido se apaixonar por um completo desconhecido.
Sua mãe e sua avó deviam estar dormindo em seus quartos, e Elisa não acordou nem avisou ninguém. Fechou a porta em silêncio e entrou de novo no mesmo táxi que mandara esperar, carregando nos ombros o peso incômodo do essencial pra que ela e a humanidade não desaparecessem. Na pior das hipóteses, aquilo um dia seria encontrado fossilizado junto a ela. Pela próxima espécie dominante.
Sentada no banco do táxi, o motorista esperava.
- Pra onde?
Elisa tirou o aparelho do bolso da calça jeans e discou seu próprio número.
- Rua 30 de novembro, no. 900, apartamento 2. - a voz de Peter lhe entrou pelos ouvidos como uma lufada de vento gelado, e ela se arrepiou até os tornozelos - Vem.
Ela repetiu o endereço pro motorista e fechou os olhos.
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